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COLÉGIO ESTADUAL “PAES DE CARVALHO”

Colégio Estadual “Paes de Carvalho”, o “CEPC”, era a minha segunda casa. Estudei muito para conseguir passar no exame de admissão. Ingressei, cheio de orgulho, na quarta série ginasial.

Se as janelas do “Pinto Marques” me encantavam, as do “Paes de Carvalho” despertavam em mim um outro tipo de emoção extraordinária. Ao avistá-las, sentia-me feliz. Uma felicidade de conforto e segurança. Fui avisado de que não seria fácil estudar ali, mas nada eu temia e, da quarta série ao último ano do Clássico, saí-me bem e acima da média. Tive professores excelentes. Poderia não gostar de alguns, mas todos eram competentes. Tive sorte de ter conhecido, durante um ano, a sua antiga conformidade, pois logo adiante uma grande reforma modificou radicalmente o seu interior. Como era tombado, e ainda bem, a parte externa com suas históricas e tradicionais janelas permaneceu quase a mesma. Com rapidez, a parte interna e seu acervo cultural de valor incalculável foram substituídos por uma modernidade que se apelida e se justifica de prática: linhas desprovidas de senso estético, muito cimento, muita laje e tudo o mais, tal como as construções que se encontram aos montes espalhadas pela cidade, sem precisar de assinatura.

O Colégio Estadual “Paes de Carvalho”, com sua imponência, de imediato impunha respeito. A sociedade correspondia à altura. Ser funcionário, diretor, professor e aluno desse estabelecimento público de ensino era ser um cidadão privilegiado e apontado como muito capaz de não se contentar com mediocridades.

Suas portas e janelas funcionavam como páginas de importante livro que todos os dias nos ensina uma necessária lição. As duas escadas com suas curvas e corrimão entalhado constituíam, por si só, obra de arte. A sala dos professores, no andar superior, parava a respiração de qualquer aluno. Ampla, arejada, com muitas janelas voltadas para a rua João Diogo e para um bonito pátio onde acontecia o recreio masculino. Delas se avistavam as copas das mangueiras. Toda assoalhada de madeira nobre, preta e amarela, conservada e encerada. Tinha uma divisória trabalhada que separava aquele lugar sagrado do resto do ambiente. No centro, uma extensa e honesta mesa com muitas cadeiras de espaldar alto esculpido. Desta mobília emanava uma atmosfera de responsabilidade sem meio-termo. Mesa e assentos ficavam ainda mais humanizados e bonitos com a presença dos mestres. Cadeiras de balanço com legítima palhinha também se faziam presentes para maior conforto do irrefutável corpo docente. Quando ali eu avistava os meus professores, meu coração disparava de tanta emoção. Sabia que também me observavam e eu tinha muito orgulho de ser um aluno exemplar. Sabe, mesmo vazia, a sala dos professores do “Paes de Carvalho” se apresentava aos meus sentidos como sagrada, uma pintura ou uma sinfonia que logo me levava à meditação.

O Laboratório de Química, no andar térreo, era outro acervo de causar inveja a muita instituição de ensino de agora. Tudo em madeira de lei. Armários envidraçados até o teto guardavam todo o material necessário para que o professor, na prática, pudesse demonstrar a teoria ministrada previamente em sala de aula. Os assentos, com sua devida bancada onde os alunos ficavam, ocupavam uma parede inteira até uma boa altura. Dali apreciávamos o espetáculo das misturas com substâncias químicas reagindo em cores, fumaças e odores. A aula seguia no compasso dos seguros gestos e voz firme do mágico das fórmulas. Estas e os elementos químicos me tiravam o sono até, pelo menos, conseguir sabê-los de cor a fim de que eu pudesse resolver as questões da prova. Eu já me encontrava voltado para a área de Humanas. No Laboratório de Química, abstraía-me e, por isso mesmo, não foram poucas as vezes que ouvi cabíveis repreensões.

O Salão Nobre era muito nobre mesmo. Próximo à Sala dos Professores, de frente para a Praça da Bandeira e com a sua ampla atmosfera, perfeita confraria entre passado, presente e futuro. Não descrevo a mobília para evitar repetir comentários, mas faço questão de fazer referência aos retratos de personalidades, emoldurados e pendurados em toda a extensão das paredes, logo abaixo do teto. A gravidade que estas fotografias imprimiam ao ambiente, estejam certos, afastava qualquer possibilidade de um gesto que viesse conspurcar o chão, os móveis, as paredes, as janelas, a porta e a memória social e histórica do Colégio Estadual “Paes de Carvalho”.

A Cantina, pequenina, tinha lá o seu charme. Talvez por conta dos azulejos antigos. Situava-se na parte central do prédio, de forma a servir os recreios masculino e feminino que ainda eram separados. Na sala de aula não havia tal discriminação. Quase eu não me dirigia à cantina, mas, se trazia no bolso algum trocado, não perdia a oportunidade de arriscar um cafezinho a fim de dar uma conferida no lado de lá e quem sabe ver as meninas que conversavam alegres naquele curto momento de descontração. Não tinha dúvida de que muitas também faziam o mesmo. Muitos namoros começaram ali, com olhares furtivos e acabrunhados que atravessavam a movimentação da Cantina de onde Eros atirava suas certeiras flechas.

Era um prédio muito antigo, mas muito mais vivo e atuante. A sensibilidade e os olhos atentos da diretoria, dos professores e das inspetoras marcavam presença contínua desde a entrada até às últimas dependências. Claro que não viam tudo. Jovens, por mais responsáveis possam ser, estão sempre inventando moda, subvertendo alguma regra, saindo dos trilhos e, vez em quando, também aprontávamos. Se éramos pegos na estrepolia, as punições não eram nada suaves e demoravam para se esgotar. Às vezes tínhamos razão de reivindicar, de fazer “barulho”, até conseguirmos ser ouvidos e atendidos. Eu gostava de estar entre os líderes das “muvucas cepeceanas”.

As inspetoras do “Paes de Carvalho” eram um caso à parte. Senhoras de si, no uniforme de saia justa azul marinho e blusa azul e branco de xadrez bem miudinho. Para os alunos, dependendo das circunstâncias, elas protagonizavam tanto o papel de fada como de bruxa, pois exerciam a função de “olhos e ouvidos do rei”. Com as inspetoras de CEPC não havia protecionismos nem meias-conversas. Sempre respeitosas, mas, diante da insubordinação, fosse a mais leve, elas mudavam o tom de voz, o olhar e os gestos assimilavam a postura de general diante da tropa. Durante o tempo que vivi no “Paes de Carvalho”, nunca presenciei, sequer uma vez, em que a palavra de uma inspetora tivesse sido desconsiderada. Elas levavam a ocorrência à diretoria e, quanto mais o autor ou a autora do deslize tentava se defender, mais a culpa aumentava perante o veredito de reprovação da autoridade máxima. As inspetoras também se encarregavam da higiene e da manutenção das salas de aula. À chegada de cada docente, lousa, mesa e apagador tinham de estar limpos e as famosas pedras de giz não podiam faltar. Sentavam-se em uma carteira que ficava na entrada de cada sala e, dali daquele posto, assistiam às aulas e observavam o comportamento do professor e dos alunos. Quem ainda se lembra de dona Neném, já bem idosa, toda compenetrada e elegante, e de dona Laurinda, a dona “Loló”, com seus quadris largos, muito redonda, e ágil feito um azougue?

O rigor começava na recepção. Atraso, saia fora do padrão, distintivo solto, alça arriada e sapatos e meias fora do contexto, ainda que fosse dia de prova, o discente dava meia volta e ia pensando como justificar em casa o acontecido. Assim, o “Paes de Carvalho” nos ensinava a exercer a contento o nosso papel de estudante e nos exigia responsabilidades de cidadãos.

A sala de Canto Orfeônico, logo depois da entrada, ao lado esquerdo, oposto ao da secretaria e do arquivo, voltada para a praça, tinha duas portas, ambas no tom tradicional, azul colonial. A primeira era enorme e lembrava porta de igreja. A segunda era menor e dava acesso à área do recreio, da ginástica, dos banheiros e à escada das alunas. Quando tínhamos aula de canto, as duas portas eram mantidas fechadas. Esta sala era ampla e constava de assentos e bancadas, à semelhança do Laboratório de Química, tomando toda a extensão da parede mais larga, onde estavam as janelas. À frente, uma pequena escrivaninha, uma cadeira e, na parede, a lousa com giz e apagador. Era o reinado da Professora Maria Luzia Vela Alves. Baixinha, gorda, atarracada, pernas arqueadas e extremamente vaidosa e exigente no seu ofício. Nela, tudo era um tanto exagerado. Trazia sempre à mão um leque estampado e perfumado com o qual nos assustava, batendo na escrivaninha, na mesa e até no nosso braço quando nos encontrávamos absortos ou em descompasso com os seus ensinamentos. Confesso que, além de respeitar, eu tinha medo da ilustre professora. Não era bom aluno de cantoria. Gostava de cantar, mas, ali, não se tratava de apenas soltar a voz, tudo tinha de ser medido e afinado. Os hinos, eu os sabia de cor, mas um tal de “Passarinho da lagoa se tu queres avoar, avoa, avoa, avoa já...”, meus amigos, eu trocava os versos e acontecia o pior. Cansado de levar repreensão da mestra Vela Alves, resolvi anotar em um caderninho as letras que me causavam maior dificuldade. Uma espécie de cola que, depois de estrategicamente escolher o lugar onde sentar, colocava em cima dos joelhos e fosse o que Deus quisesse. Não deu noutra; astuta, com os seus olhinhos de lince, a mestra me descobriu. Arrancou-me a caderninho, abriu a porta principal e voou com ele o mais distante que pode. Assim era Maria Luzia Vela Alves, uma competência em Canto Orfeônico. Professora Vela Alves não admitia falhas e, graças ao primoroso trabalho da mestra, o “Paes de Carvalho” fazia bonito nas suas apresentações de canto, concorrendo com outros colégios públicos. Orgulhava-me disso.

Mas o meu querido Colégio Estadual “Paes de Carvalho” não era só um belo prédio, a Praça da Bandeira, bonita e bem cuidada naqueles tempos, era de fato uma sua extensão. Nela, sozinhos ou em grupos, passeávamos, sentávamos para estudar, jogar conversa fora e até, com muito zelo, flertar. A Praça da Bandeira também foi palco de rebelião quando o corpo discente, muito indignado, resolveu depor um certo diretor que não correspondia à decência e ao espírito cepeceanos. Era assim mesmo, exigência de ambas as partes e a correspondência precisava se mostrar a postos e todos os dias.

Com esta crônica, presto homenagem ao meu saudoso mestre de Geografia, Benedito Gomes da Silva, extensiva a todos os demais professores, inspetores e cepeceanos de consciência, memória e coração.


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