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CRÔNICAS BELENENSES - ACAMPAMENTO CIGANO

ACAMPAMENTO CIGANO Quando menino, morei no bairro do Umarizal, na Dom Romualdo de Seixas. Atravessando esta rua, sentido Doca, na esquina da Diogo Moia, lado esquerdo, existia um terreno baldio muito amplo. Algumas árvores, muito capim, lixo e alguma lama quando chovia em demasia. Nesse lugar, quase sempre sob protestos, ameaças e muitos preconceitos, ciganos vindo de muito longe montavam seu acampamento. Eram muitos, famílias inteiras, do bisavô ao bisneto, todos reunidos nas suas tendas coloridas e seus apetrechos. Chegavam em carroças puxada por cavalos, traziam vaca leiteira, galinhas, cabra, carneiro, cachorro, gato e papagaio. Até aqui, dou-lhes certeza de que digo estritamente a verdade. Como eu era muito criança, talvez tenha visto pouco ou além do que devia. Talvez minha memória guarde fantasias que, mesmo sendo fantasias, constarão desta crônica, pois é só assim sei que contar e descrever a respeito dos ciganos que eu conheci. As lembranças são muitas e de um passado muito distante, a linguagem é de agora e, por ser de agora, possibilita-me trazer para este escrito um pouco do universo de tão intrigante povo, sem, no entanto, pretender compromissos, sequer superficiais, com sociologia, história, antropologia ou estudos migratórios. Sou eu apenas, já maduro, escrevendo recordações do tempo de quando eu era menino. Tinha oito anos quando tive o primeiro contato visual com um acampamento cigano. Fiquei fascinado. Empaquei diante daquele mundo de gente, bichos e coisas. Madalena, que me levava para aula de catecismo, puxava-me, dizia ameaças e eu não me movia. O terreno estava totalmente modificado; não era mais baldio. As árvores foram aproveitadas para atar redes, amarrar cavalo, cabra, carneiro e empoleirar o papagaio. A vaquinha ficava perto de um jirau que eles haviam construído com caixotes de feira. O cachorro, perto do cercadinho das galinhas e o gato, muito lindo, vivia encoleirado e esparramava-se em cima de uma almofada vermelha. Tradição e improvisação seguem de mãos dadas em um acampamento cigano. Vida itinerante, tudo muito incerto. Cada dia é composto de acordo com os propósitos, alcançados ou não, que se entrelaçam com os fios das surpresas, boas ou ruins, surgidos ao longo das horas. Depois de muita insistência e beliscões, já tendo certeza de que os ciganos haviam gostado de mim, pois sorriam e me faziam sinais para que chegasse mais perto, segui para os maçantes estudos que me preparavam ruma à primeira comunhão. As freirinhas chamaram atenção de Madalena pelo atraso e ela me olhou bufando de raiva. Não sentia remorsos e já sabia o que me esperava em casa. Entre uma reza e outra, uma freirinha amedrontadora nos dava explicações, sempre apontando para o telhado, quando se referia ao “Deus Pai Todo Poderoso” e à “Santíssima Trindade”. Com muito mais desconfiança que pavor, eu lançava uma ligeira espiada no telhado e só encontrava as telhas e a madeira que as sustentava. Ficava aliviado e, por fim, achava muito bom não encontrar vestígios dessa gente importante e cheia de poderes. A verdade é que, durante a doutrinação, só o meu corpo se encontrava preso à carteira, o resto voava para o acampamento cigano. Corria sério risco de sentir a palmatória, caso não soubesse de cor os ensinamentos da aula, mas, sabe como é, não tinha nenhum controle sobre o meu pensamento de asas ligeiras e ávido pelas coisas da vida. As cores. Eram muitas e dançavam no descampado, ao sabor do vento e sob a luz da manhã, estendidas nos varais, nas roupas que cobriam os corpos e nas bandeirinhas que enfeitavam as carroças. Os sons eram muitos e misturavam-se, compondo um todo misterioso, pois, por mais me esforçasse, não conseguia entender as palavra, os ruídos e os murmúrios que vinham do interior das tendas entreabertas. No primeiro contato com este cenário inusitado, a emoção que era tanta e a chateação de Madalena não me deixaram observar os detalhes, mas senti a essência de tudo o que se mostrava não apenas aos meus olhos curiosos. Senti que havia encontrado um mundo novo que eu precisava explorar. Há pelo menos uns cinco dias dessa experiência sensorial, ouvia comentários de que uma gente muito esquisita estava chegando em Belém. Que eram muitos. Que não sabiam onde iriam ficar. Que iriam tirar a paz da cidade. Que, tomara, fossem para muito longe do Umarizal. Que eram ladrões. Que pegavam crianças e lhes comiam o cérebro. Que eram feiticeiros. Enfim, colocaram na minha cabeça, durante uma semana, um mundo que todo menino esperto quer para desbravar. E eu encontrei esse mundo a caminho da aula de catecismo. Arquitetei planos para a volta, mas o castigo chegou antes. Minha mãe foi me buscar. Conversou alguns minutos com a freirinha, lançou-me um olhar contrariado e saímos. Da Senador Lemos até à nossa casa, o trajeto mais curto era vir direto pela Romualdo de Seixas. Para evitar o acampamento cigano, seguimos pela Dom Pedro, Generalíssimo e só dobramos na Domingos Marreiros para alcançar a Romualdo. Ou seja, nenhuma possibilidade de avistar os ciganos. Minha sorte, no entanto, estava traçada. Ainda na Generalíssimo, numa loja muito conhecida e bastante frequentada, pois ali se encontrava de tudo, da louça fina ao candeeiro, três ciganas faziam compras. A mão de mamãe se estreitou na minha e disparamos um quarteirão e meio num piscar de olhos. Não vi o que eu pretendia ver, mas vi alguma coisa. Em casa, ouvi repreensões e uma porção de histórias assustadoras. Fui para a escola ainda mais impressionado e, se tudo isso era para me afastar do acampamento cigano, o efeito foi justo o contrário, pois minha curiosidade cresceu e se tornou incontrolável. Visitando meu avô, contei-lhe as novidades. “Bobagem, meu neto, tudo bobagem, mas obedeça sua mãe”. Quanto a obedecer à minha mãe, eu não punha nenhuma fé, mas acreditava seguramente que o que diziam dos ciganos era tudo uma grande bobagem. Ganhara um aliado de peso e isso me fazia esquecer as ameaças de castigo. Assim, qualquer oportunidade surgida, desse-me o trabalho que fosse para escapar da vigilância, eu ia diminuindo a distância entre o acampamento cigano e a minha existência. Faziam a comida em fogareiros de ferro, mas também usavam tijolos dispostos no chão, deixando um espaço no meio onde colocavam carvão e ateavam fogo. De noitinha, o acampamento ficava ainda mais bonito. Compreendi mais tarde que esse tipo de “moradia” improvisada acarreta problemas sociais para a cidade. Antes, não se cogitavam esses problemas, apenas se criavam lendas, histórias fantásticas de que eu menino, embora gostasse de ouvi-las, delas fazia galhofa. Nem bem algum cigano ou cigana despontava no quarteirão, recolhiam a meninada, portas e janelas se fechavam e os burburinhos tomavam conta das casas. Aí eu me lembrava do meu avô. “Tudo bobagem”. Os ciganos, homens e mulheres, também tocavam violão, acordeom, violino e dançavam lindamente. Mais uma vez a sorte mostrou-se a meu favor. Chegou meu aniversário e a pedido de minha madrinha, fui passar uma semana com ela que me enchia de atenção e presentes. Destes, o melhor foi eu saber que ela apreciava acampamentos ciganos. Eu estava feito. Com a desculpa de saborear um sorvetinho na Santa Marta, ali na Oliveira Belo com a Romualdo, onde hoje é a Cairu, madrinha e afilhado vinham passeando até à esquina da Diogo Moia e ali nos demorávamos até o sorvete acabar. Todos tinham uma função ainda que fosse aparentemente a de não fazer nada, pois o que aos nossos olhos parecia nada, para eles era tudo, como contemplar as nuvens, as estrelas, a chuva, a vida. Os muito idosos viviam contando suas experiências aos mais novos. Mãos habilidosas faziam roupas e bonecos para vender e havia capricho na disposição das coisas pelo acampamento. Fiquei com a certeza de que os ciganos gostam de brincar com as cores. Por toda a parte do acampamento elas formavam um verdadeiro arco-íris. Minha madrinha gostava de vê-los tocar. Eles já nos conheciam e, muito à vontade, ofereciam-nos banquinhos. Sentávamos e o espetáculo à nossa frente nos deixava muito felizes. Vi os ciganos tratarem da terra, fazerem horta, cultivarem flores, ordenharem a vaca, a cabra, matarem galinha, cuidarem dos cavalos, ensinarem o papagaio a falar, montarem no carneirinho, rolarem com o cachorro Níger e mimarem o gato Ronrom. Tocavam e cantavam lindas canções e, além de tudo isso, ainda sabiam ler o destino nas mãos das pessoas de alma mística e crédula. As visitas aos ciganos, que eu fazia com a minha madrinha, para evitar estragos, não as comentava com ninguém, nem com meu avô. Uma tarde, no entanto, Madalena, precisando encapar botões a mando de mamãe, sem opção de um outro trajeto, encontrou-me a brincar com as crianças do acampamento e só não me levou para casa porque minha madrinha que apreciava a horta na companhia de suas amigas ciganas, tomou as rédeas da situação. Houve alguns atritos, mas, logo adiante os adultos se entenderam, os ciganos partiram, Madalena voltou para o interior e eu registro aqui essa experiência que compartilho com vocês e que me acompanha vida afora.


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