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MÃES PÓS-MODERNAS


Hoje, impressiono-me como, já com treze anos e no ginásio, eu ainda acreditava que ser mãe era padecer no paraíso, era desfiar fibra a fibra o próprio coração, era ser uma heroína obstinada e crédula de que seus deveres maternais foram inscritos somente para ela e, cumpri-los, resultava em se tornar quase santificada e crucificada todos os dias e todas as horas da sua aprisionada e amesquinhada existência. As meninas e as mulheres das gerações mais recuadas, salvo algumas exceções, não tinham acesso a conhecimentos que pudessem lhes dar poder e maior discernimento.


Elas não conheciam Francis Bacon, Michel de Montaigne, Étienne de La Boétie, Nietzsche, Descartes e muito menos Sartre e Simone de Beauvoir. E, mesmo se lessem esses pensadores, de nada lhes adiantava. Aliás, conhecer teorias “proibidas”, para esse ser subtraído, significava encrenca, pois saber além das limitações impostas, quase sempre lhes garantia a probabilidade de sofrer ainda mais. Como quem sabia que tudo estava em desacordo com o que de fato deveria ser, mas, porque se encontrava adestrada, resignava-se e aceitava a sina. Orgulhava-se de parir dez, quinze ou vinte filhos. O marido estufava o peitoral e, cheio de júbilo, dizia “A patroa está grávida. É o nono. Quero um time de futebol”. Vi minha mãe parir um filho atrás do outro. Lembro-me dela apenas com aquele barrigão, as mamas arriando e a palidez, causada pela anemia, roubando-lhe o viço e a disposição. Quando reunida com as vizinhas ou com as parentas, seus olhos murchos recobravam um certo brilho ao ouvir elogios que a condenavam à heroína, à santa, à devotada mulher do lar, do chefe da casa, dos filhos e, claro, de Deus todo poderoso que, à semelhança de quem o criou, cobria de bênçãos a pobrezinha que, além das determinações divinas tinha de ser o esteio moral da família. Caso ousasse contrariar as regras preestabelecidas, era escorraçada e recebia outra condenação ainda pior: a de ser perseguida e humilhada pela sociedade e pela própria consciência que fora meticulosamente moldada desde a mais tenra idade. Ou seja, a mulher não se fazia mulher. Era apenas um bicho domesticado e aprisionado. Tal como aquela “galinha de domingo” do conto de Clarice Lispector. E quanto mais elogios ela ouvia, arfando o peito, abotoando e desabotoando os olhinhos, mais orgulhosa dedilhava o seu terço com relatos escabrosos de partos medonhamente sofridos. Dessa época, eu testemunhei os panos que chegavam à tina, encharcados de sangue a cada vez que minha mãe urrava de dor ao dar à luz mais um rebento. Um novo filho, promessa de futuros sacrifícios aos quais não deveria nunca renunciar ou sequer, às escondidas, maldizê-los sob pena de se transfigurar em Medeia sem qualquer possibilidade de um tiquinho que fosse de perdão. Ainda me arrepio e me gelam os ossos quando volto ao passado para poder melhor refletir o presente e melhor elaborar o futuro. Por um triz não me arrastaram àquela estúpida doutrinação. No entanto, o servilismo ainda grassa em muitos lugares do planeta. Ainda ouvimos relatos épicos de fêmeas que têm filhos como quiabos de tão frouxo e alargado encontra-se o períneo, ou que, para os expelir das entranhas em direção à luz, berram de dor e sangram o sangue que nunca lhes é reposto por falta de procedimentos médicos adequados, por falta de alimentação necessária, por falta de vida humanizada, esta, surrupiada pela ignorância e pelos sistemas autoritários e em geral corruptos que comandam todas as “boiadas”.


Não posso e nem devo afirmar que mulheres e mães pós-modernas não sofrem e que nunca mais serão surpreendidas “rangendo sedas na alcova”. Em qualquer tempo a vida sempre terá angústias. A vida, por melhor seja, sempre terá pontos favoráveis e desfavoráveis, clarezas e escuridões, progressos e retrocessos e, por isso mesmo, a luta contra ignorâncias e abusos é inevitavelmente sísifa, ou seja, é para sempre. A despeito dessa certeza, as mulheres pós-modernas sabem que devem obter conhecimentos para melhor fazerem suas escolhas; devem ser resolutas em não se tornarem servis; devem ser donas do próprio corpo; respeitá-lo, uma vez que, sendo o seu próprio corpo a sua maior intimidade, ele também é o seu templo, o mais sagrado, o mais abençoado e merecedor de todas as bênçãos de todas as forças positivas do universo; devem saber que, mais mulheres se tornarão, quanto maior for o seu empenho em conviver bem e em harmonia com as diferenças de agora, bem como com as diferenças que, a caminho, preparam-se para eclodir daqui a pouquinho, geradas em úteros naturais ou artificiais. As mulheres pós-modernas sabem que podem escolher em ter ou não ter filhos. E, independente de procriarem ou não, se assim o quiserem e puderem, sabem que poderão tornar-se Mães. Lindas e adoráveis Mães, essencialíssimas para o bem-estar da Vida, do Amor Social, aqui na Terra como em qualquer outro planeta, a exemplo de Gaia e da Mãe Natureza.


E, para não dizerem que não falei de flores no dia destinado às Mães, dedico a todas as Mães do mundo, “Rosa”, de Pixinguinha, interpretado pelas divinas mãos de Hermeto Pascoal. Da letra dessa valsa, aprecio a primeira parte. Quanto à segunda, eu a considero carregada de pieguice. Mas, como “gosto não se discute”, se for do seu gosto, sugiro “Rosa” na interpretação de Caetano Veloso. E, bem a propósito, embora seja uma tragédia, e, embora eu não a recomende para o Dia das Mães, eu aprecio “Coração Materno”, de Vicente Celestino, também na voz e violão do Caê. Esta peça musical, uma canção-tango, leva-nos a refletir quanto à imensurabilidade do Amor Maternal, no ser masculino ou feminino. Mostra-nos a que ponto podem chegar a Paixão, o Amor Materno e o Amor Filial. Paradoxal, não é mesmo? Mas viver é paradoxal.



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