top of page

FILHOTE À FAFÁ DE BELÉM

“FILHOTE À FAFÁ DE BELÉM”


Se você ler e depreender o poema DOBRADA À MODA DO PORTO de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, de imediato entenderá a mensagem desta crônica. No entanto, caso não queira se dedicar a este exercício, mesmo assim, você alcançará o meu recado. Ele é claro.


DOBRADA À MODA DO PORTO


Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,

Serviram-me o amor como dobrada fria.

Disse delicadamente ao missionário da cozinha

Que a preferia quente.

Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.

Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.

Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,

E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?

Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda gente houve um jardim,

Particular ou público, ou do vizinho.

Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.

E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,

Mas, se eu pedi amor, por que é que me trouxeram

Dobrada à moda do Porto fria?

Não é prato que se possa comer frio,

Mas trouxeram-me frio,

Não me queixei, mas estava frio,

Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


Aproveitando minhas férias, fui passar umas boas horas na Estação das Docas, aqui na minha terrinha, Belém do Pará. Chuva, Guajará, e belas propagandas dos restaurantes enaltecendo um dos nossos peixes mais saborosos, o filhote, abriu-me o apetite. Adivinhando minha intenção, um garçom logo se apresentou. Ainda do lado de fora do salão onde ficam as mesas, disse-lhe em tom de quem sabe e conhece o que quer. “Moço, estou com vontade de saborear um FILHOTE”. “Pois não. Temos pratos deliciosos e um filhote ESPECIAL”. O garçom falava e já me conduzia às mesas.


Ele foi buscar o cardápio. “Moço, dá para trocar este vasinho com flores por aquele outro, ali? Estas flores estão muito feias...”. “Sim, pois não. Verdade, estão muito feias”. Falava-me com um sorriso sem vida. Não adiantou, pois só de longe as outras flores pareciam melhores. Afastei o arranjo inútil. Sabe-se lá há quanto tempo aquela água com aquelas miseráveis flores estavam ali... (um bom criadouro de mosquito). Tratar desses assuntos em restaurante...


“Moço, quero este prato aqui, Filhote à Fafá de Belém, mas, por favor, tire o queijo. Pode ser”? “Sim. Alguma coisa pra beber”? “Um suco de abacaxi com hortelã. Sem açúcar”. “O peixe é grelhado, não é”? “Sim, é grelhado”. “Então, providencie isto para mim, no CAPRICHO”. “PODE DEIXAR”.

Chovia. Não sei dizer o porquê, mas aquelas flores me lembravam cemitério. Levantei-me, peguei a decoração mixuruca e a coloquei em outra mesa.


Quinze minutos. Vinte minutos. Quarenta e cinco minutos, lancei um olhar de cobrança em direção ao garçom que estava parado feito uma estaca de costas para a cozinha e ele se mexeu.

Olhei à minha volta e fiquei preocupada. Somente eu estava ali. (Vai que a comida é muito ruim..., nããão, vai ver está muito cedo. É isso.)

Eis que chega o “Fafá de Belém”. Escolhi este prato pelo filhote e pelo arroz com jambu. Ele poderia chamar-se Pedro, João ou Joaquina, o importante era ter filhote, arroz com jambu e que fosse preparado no CAPRICHO.


A apresentação não me convenceu. Não tinha cheiro. Os dois magrinhos pedaços de filhote nadavam no óleo e combinavam com as flores da semana passada. O arroz? Uma gororoba ardida, misturada com requeijão e gorgonzola. O jambu ficou na feira. E a batata? Nem vale a pena descrevê-la. O prato todo era pura melancolia. Mas, ali eu estava. Queixei-me ao garçom e pedi a ele que me trouxesse uma dose de arroz branco. Arrisquei testar o peixe. Pedi limão. Queria levar adiante o sacrifício. Não deu. Um pitiú aniquilou de vez a vontade que eu estava de saborear um filhote no CAPRICHO.


“Fafá de Belém”... O que é isto? Justo aí, eu já estava saindo da indignação e alcançava a ironia.

Está certo que não precisava de toda a extensão da gargalhada e tampouco de toda as demais abundâncias da artista, mas, dá licença, este prato aqui não merece homenagear absolutamente ninguém. E ninguém merece ser ofendido por ele.


“Desculpe-me, mas isto aqui está insuportável. Tentei, mas tudo está muito ruim”. “Você gostaria de dizer isso pro Chef”? “Sim. Ótimo. Pode chamá-lo, por favor”.

Com passo firme, estufando o mais que podia o peitoral e com o olhar faiscando, o Chef se colocou à minha frente de forma oblíqua e no ataque que é a melhor defesa, “O que houve”? Mas o fato estava ali na mesa. Um “Filhote à Fafá de Belém”, em plena Estação das Docas, desastroso. Uma vergonha!


Embora o tom de arrogância do Chef, conduzi o episódio na diplomacia. “Chef, desculpe-me, mas perdi o apetite. Tudo, peixe, arroz, jambu, batata, tudo está horrível, gorduroso e pitiú... “Trata-se do Filhote Fafá de Belém”. “Eu pedi sem queijo”. “Mas leva queijo do Marajó”. “Mas eu pedi sem queijo. E cadê o jambu”? “Trata-se de arroz arbório”. “Conheço, mas eu pedi sem queijo”. “É, tem parmesão e gorgonzola”. “Pior ainda”. E antes que ele se esforçasse para justificar o injustificável, “Mas, pode deixar, eu pago. Traga-me a conta”.


O Chef foi exercer a arrogância dele na cozinha, desforrando no cozinheiro. Após alguns minutos ele retorna com a conta. “Olhe, veja, não vamos cobrar pelo serviço. Fica só isso”. Dei-lhe uma “garoupa”. Quando o garçom voltou com o troco eu paguei-lhe a comissão. Espantou-se. “Sim. Você não tem culpa de o peixe estar ruim”. Retirou-se triunfante. Ele era o único que, desde o vasinho com flores desfalecidas, em silêncio me apoiava.


Retorna o Chef. “Olhe, pra você não sair daqui insatisfeita, peça um outro prato. O que você quiser...” Ele havia entendido o recado. “Agradeço-lhe, mas já chamei o táxi que deve estar chegando”. “Fique, peça outro prato”, insistia. “Tudo bem, mas não agora. Voltarei um outro dia”. “Venha e procure por mim”. Repetiu esta frase três vezes e ainda confirmou o seu nome. “Voltarei, pode deixar. Muito obrigada”.


Arrumando-me para sair, tomava pequeninos goles do suco de abacaxi com hortelã que me foi servido com muita espuma e com uma enorme pedra de gelo. Sabe-se lá a origem deste “iceberg”. Mas eu precisava eliminar o gosto ruim do “Fafá de Belém” que insistia na minha boca.

Durante o trajeto até onde moro, revi, passo a passo, o acontecido, e “DOBRADA À MODA DO PORTO me veio à lembrança. Esta crônica já estava a caminho.


Moral do texto: tal como no poema de Álvaro de Campos, se o respeito mútuo não existe, as relações humanas tornam-se precárias e todos saem perdendo.

Destaque
Tags
Nenhum tag.

Parabéns! Sua mensagem foi recebida.

bottom of page